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25 de jul. de 2021

Paz sem voz não é paz, é medo


Quando estava no segundo grau, que hoje em dia se chama Ensino Médio, um texto chamou-me a atenção, impressionando de tal forma minha cabeça adolescente que anotei-o no meu caderno de rascunhos:

"Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores, matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada."


Ainda lembro do livro onde li este trecho, da impressão que me causou e de como essas palavras ecoam em minha mente desde então, quase vinte e cinco anos depois. 

Sempre o achei tão contundente, e ele também me lembrava muito a escrita de Bertolt Brecht: 

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

................................................

Os dois textos se relacionam muito quando notamos que deixamos de nos solidarizar, de sentir as dores de nossos irmãos, de mostrar nossa indignação, nem sempre por conivência ou por falta de empatia e sim por medo. Medo da repressão, medo do julgamento, medo de ver ruir nossa pequena estrutura de paz e sossego tão instável. 


Graças à internet, encontrei o restante do texto daquele trecho que tanto me marcou. É um poema de autoria de Eduardo Alves da Costa, o qual deixo abaixo: 

NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!


Queria destacar alguns trechos, mas acabaria destacando o poema inteiro! 
O que podemos fazer para não ficar "sem dizer nada" e por temor, nos calarmos enquanto esperamos inutilmente a democracia aparecer no balcão? 

Cansei de passar tantos anos na escola e na faculdade ouvindo que "um outro mundo é possível", tantas trocas de ideias e até agora parece que nem um centímetro deste outro mundo possível chegou perto da gente. Tem dias que a gente acaba torcendo para que o que chegue mais perto seja o meteoro de uma vez, pois a impressão é de que estamos  vivendo presos dentro do clipe de Do The Evolution, do Pearl Jam. 

Mas nós, pequenos seres humanos vivendo no pequeno ponto azul no imenso espaço, também temos representantes de nossa espécie que "possui a estranha mania de ter fé na vida" e por isso mesmo nos piores momentos não conseguimos, e não queremos, desistir de vez. Precisamos manter nossa alma "armada e apontada para a cara do sossego", como dizia a música d'O Rappa, já que  "paz sem voz não é paz, é medo". Afinal,  "Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz?"


"Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre" (...)
é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida


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(Gosto muito de ouvir música, cantar e às vezes tentar tocar. Já escrevi muitos textos baseados em canções de diferentes gêneros, e enquanto traçava o começo deste texto, foi inevitável pensar em algumas músicas. Abaixo, deixo as canções que me fizeram rascunhar este costurado de ideias)




Do The Evolution -  Pearl Jam




Maria, Maria - Milton Nascimento





 A minha alma  (A paz que eu não quero) - O Rappa





Até a próxima!!!

2 comentários:

  1. Muito lindo esses trechos e poema ,Mari. E quantas vezes os ouvimos e associados aos nossos políticos... Triste isso,ainda bem as músicas ajudam e adoro o Milton Nascimento! Precisamos que nos deixem ter PAZ! beijos, limdo dia! chica

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  2. Olá Marian, tive contato com este texto que fora atribuído à Maiakovski, muito usado pelo pessoal da esquerda que lutava pela concretização da democracia saindo do Diretas Já e eu universitário estava engajado nos movimentos, inclusive o tive estampado no camiseta Hering branca. O texto é revolucionário e exalta a garra, a decisão de romper com o que lhe sufoca e degrada. Muito boa as correlações que fez com outras composições, inclusive ilustrando com Maria Maria de Milton, que é um hino às mulheres que se deixavam levar onda machista e que ainda é latente nos dias atuais, como se nada tive valido a pena, mas valeu, pois gerou uma Maria da Penha.
    Adorei ler com atenção cada passo de seu texto e gratidão pela informação da origem do texto.
    Valeu amiga e vamos que vamos com força, fé e garra.
    Um abração e bom fim de semana com o descanso merecido.

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