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20 de nov. de 2024

Resenha: Dois Mortos e a Morte e Outras Histórias, de Tanto Tupiassu

 LivroDois Mortos e a Morte e Outras Histórias

Autor: Tanto Tupiassu ( Fernando Gurjão Sampaio)

Editora: Rocco
1ª Edição, 2023
192 páginas




#paratodosverem: capa do livro Dois Mortos e a Morte: um fundo vermelho com o título do livro impresso dentro da imagem da lua cheia. Abaixo, no fundo vermelho com letras maiúsculas, o nome do autor e a imagem em azul de uma pequena capela no centro, tendo à esquerda uma palmeira e a direita uma estátua de santo. Abaixo,o nome da editora: Rocco. 


Tanto Tupiassu ficou famoso por seus causos de assombrações e visagens, que inclusive eu costumava acompanhar no Twitter (me recuso terminantemente a chamar de X) e agora acompanho no Bluesky.

    Mesmo conhecendo seu estilo narrativo, não pude deixar de me surpreender com a forma como as histórias são contadas neste livro. Diferente das histórias que Tanto conta nas redes sociais, que envolvem por vezes pessoas conhecidas ou ele próprio, aqui são personagens ficcionais bem construídas.

    Em todas as histórias a morte ronda as personagens, sendo às vezes ela própria protagonista. São histórias que se passam em diferentes eras, com pessoas distintas em diferentes estágios da vida.Boa parte se passa em pequenos vilarejos e Monsarás (PA) tem destaque. O sobrenatural ganha as histórias, mostrando que nem sempre a morte é o descanso eterno ou o fim de tudo. A primeira história, "Morrer Cansa", prova isso já abrindo o livro com os dois pés na porta. 

   Presentes do além, conversas pós morte, locais conhecidos como assombrados, diálogos inesperados e revelações que vão acontecendo aos poucos para nós, leitores, vendo as personagens muitas vezes sendo pegas de surpresa; tudo isso constitui as várias histórias do livro, que nos envolvem e quando menos esperamos, chegamos à última página. 

Um livro recomendado para quem gosta de histórias sobrenaturais, porém não gosta muito de terror. 

Quem gosta de causos de assombração, de escrita de terror e ficção sobrenatural ambientados no Brasil não irá se decepcionar.  

Recomendo também fortemente que leiam a   entrevista com Tanto para a revista Amazônia Latitude, publicada em 08/06/2023


O Autor: 



#paratodosverem: imagem do autor, Tanto Tupiassu, usando uma camisa com estampa floral colorida, sentado a uma mesa em um ambiente que parece ser uma lanchonete ou restaurante. Ele está sorridente,em um momento descontraído, levantando um garfo. O pequeno prato a sua frente está vazio. 


Fernando Gurjão Sampaio, também conhecido como Tanto Tupiassu, é natural de Belém do Pará. 
Seu primeiro livro, Ladir vai ao parque e outras histórias, foi premiado e publicado pela Fundação Cultural do Pará em 2018.
Em 2023 lançou Dois Mortos e a Morte e Outras Histórias. Também escreve com regularidade no Instagram, Twitter e Bluesky, encantando leitores e seguidores ao contar sobre sua vida cotidiana e textos sobre assombrações e visagens. 


Onde posso adquirir o livro?  Algumas sugestões:

Amazon ( físico e e-book)

Estante Virtual: ( físico)

Site da Editora Rocco: ( físico e e-book)

30 de ago. de 2021

Acordo tácito

   Todos os dias, Caetano fazia o mesmo percurso: saía a pé de sua casa, com a carteira no bolso dianteiro da calça, ia até a padaria que ficava a poucos metros dali, comprava pãozinho da primeira fornada para chegar em casa e comê-lo quentinho. Contemplava durante alguns minutos a colherada de manteiga derretendo enquanto passava uma xícara de café preto, sem açúcar, que sorvia devagarinho. Lavava a pouca louça, pendurava com cuidado e meticulosamente o pano de prato  para secar no varalzinho que tinha dentro da lavação, fechava a casa toda, se arrumava para o trabalho, conferia novamente se todas as janelas estavam fechadas, pegava a bicicleta e saía assoviando. Tão pontual era essa sua rotina que a vizinhança já sabia que horas eram quando o viam saindo para trabalhar. Também não consultavam seus relógios quando o viam voltando, assoviando melodias variadas, abrindo o portão da frente e em seguida pegando seu regador para aguar as flores do pequeno jardim que mantinha, empreitada que em menos de cinco minutos já estava completa. Em seguida, antes que o escuro da noite tornasse as formas do quinta indistinguíveis, ele fazia uma limpeza na pequena horta que mantinha, tirando ervas daninhas que insistiam em aparecer diariamente. Depois, não mais era visto, até o dia seguinte quando novamente ia comprar o pão quentinho. 

      Ninguém sabia exatamente onde e no que trabalhava, se tinha família ou qual sua idade. O conheciam de vê-lo na rua, quando ia fazer compras ou indo e voltando do trabalho. Cumprimentava e era cumprimentado de volta, participava de conversas corriqueiras (“nossa, que tempo maluco tem feito nesses últimos dias”) e não passava muito disso. Ninguém se sentia seguro o suficiente para ultrapassar essa fronteira de cordialidade entre vizinhos. Também não sabiam exatamente há quanto tempo Caetano morava ali naquela casa, se já havia mais gente ali ou se sempre morava sozinho. A despeito do que tradicionalmente acontecia naquela vizinhança, não costumava visitar outras pessoas, nem convidá-las a visitar sua casa, ou seja, o que conheciam era apenas o que Caetano permitia vislumbrar. E estava tudo bem assim. Ninguém parecia ter problemas com isso, aliás, deveria ter? 

    Até o dia em que um pacote com cinco pãezinhos não saiu da padaria. Não se sentiu cheiro de café. A rua ficou mais silenciosa, sem os costumeiros assobios. Não se viu a bicicleta sair, nem voltar. As flores ficaram esperando no canteiro, pela água que não chegou. As ervas daninhas começaram a aparecer entre as alfaces e pés de tomate. A princípio, os vizinhos pensaram que estivesse doente. A senhora que morava ao  lado notou a casa totalmente fechada. Alguém pensou em ligar, porém notou que não sabia o número de Caetano. Na verdade, ninguém por aí sabia se ele tinha telefone. 

   Várias vezes bateram, chamaram, gritaram, inutilmente. Resolveram então chamar a polícia. A porta foi arrombada e a surpresa tomou conta de todos. Tudo na casa estava impecavelmente arrumado, em perfeita ordem...porém o cheiro típico de casa fechada e uma camada de poeira não tão fina sobre todos os móveis e piso parecia mostrar que seu dono a abandonara há mais que apenas dois dias. 

Não havia registro de nenhuma pessoa chamada Caetano na delegacia, ao menos não com as características físicas que o desaparecido apresentava. Nenhum número de contato pendurado na porta da geladeira, nenhuma anotação no calendário que estava na cozinha, nenhuma agenda com telefones. Onde ele trabalhava poderia haver alguma informação, uma das vizinhas comentou, para logo em seguida lembrar que ninguém na vizinhança sabia onde era esse trabalho - e se realmente existia um emprego.

   No pequeno quintal, o regador repousava, seco, perto do canteiro de flores que começavam a sofrer os efeitos do sol inclemente enquanto uma fileira de formigas se dirigia para a horta. O pequeno grupo de vizinhos, silenciosamente, deu de ombros e cada qual dirigiu-se para sua casa, ruminando esse mistério. 

   Ninguém apareceu para reclamar o terreno, procurar por Caetano ou perguntar por ele aos vizinhos. Semanas se passaram com todos tentando fingir que nada de extraordinário acontecera. Mas não foi possível evitar  que teorias, das mais simples às mais mirabolantes, fossem compartilhadas e se espalhassem por todo o pequeno bairro e em breve na cidade toda. 

   Um belo dia, meses depois, a casa amanheceu com as janelas abertas, reacendendo rumores e a curiosidade da quase novamente pacata vizinhança. Conforme o dia passava, o terreno foi sendo limpo e ganhando os contornos de outrora, a água e a energia foram religadas. Canteiros de flor foram reaparecendo, exatamente no mesmo lugar. Um dos vizinhos aproximou-se e ouviu um assobio. Será possível? Teria Caetano simplesmente voltado e retomado sua vida de onde parou? Por uma das janelas, o vulto de uma mulher apareceu. Antes que o vizinho pudesse sair do terreno, a mulher subitamente virou-se e abriu um sorriso: 

- Boa tarde! 

Hesitante, o homem respondeu ao cumprimento e não conseguiu evitar a pergunta que aflorou espontaneamente:

 - A senhora conheceu o sr. Caetano? 

- Quem? 

- Morou aqui antes da senhora. Achei que fosse parente. 

- Nunca ouvi falar. Soube desta casa pelo site de uma corretora e aqui estou. 

- E não foi o Caetano que colocou para alugar?

- Não aluguei, comprei. Não sei quem era o dono. 

- Certo... preciso sair, outra hora conversamos. 

 E os dias começaram a seguir como se a casa nunca houvesse ficado vazia. Irene, este era o nome dela, levantava cedo, saía a pé para pegar cinco pãezinhos frescos, os punha em uma sacola de pano que levava ao ombro, saboreava devagarinho um dos pães com uma pequena colher de manteiga enquanto bebia uma xícara de café preto, sem açúcar. Fechava a casa toda, dava de comer ao gato, saia assoviando com sua bicicleta e voltava quase ao final da tarde, a tempo de regar o pequeno jardim e cuidar da horta, ambos nos mesmos locais e com as mesmas proporções que o morador anterior mantinha. Sentava-se à varanda com o gato no colo e ficava lá até que a escuridão tomasse conta da rua, ou até os pernilongos não a deixarem mais contemplar as estrelas. Depois só era vista novamente na manhã seguinte, quando  ia comprar seus pãezinhos, com sua sacola ao ombro. 

    Ninguém sabia da vida de Irene mais do que ela permitia-se mostrar. E todos ali por perto preferiram continuar sem saber. 

7 de jan. de 2020

Resenha: Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe

Olá!



Iniciando um novo Desafio Literário! O livro abaixo preenche dois requisitos:  um livro traduzido por mulher ( que eu não resenhei em 2019) e obviamente um livro que eu deveria ter lido em 2019. (mais detalhes dos temas no blog da Sybylla)



Agora que já iniciei a postagem com meu costumeiro parágrafo/papo furado/introdução, vamos ao post!



Imagem:  Gato, de Andy Warhol, 1976


Livro: Histórias Extraordinárias

Autor: Edgar Allan Poe



Tradução e adaptação:  Clarice Lispector

Editora: Ediouro

Ano desta edição: 2005

161  páginas




Descrição: A imagem acima mostra o rosto de um gato preto, com manchas brancas abaixo da orelha direita, na testa se dirigindo para o nariz e em uma das "bochechas". Acima da cabeça do gato, está escrito "Edgar Allan Poe", e abaixo: " Tradução e Adaptação: Clarice Lispector". O título do livro, "Histórias Extraordinárias", encontra-se logo abaixo do olho direito do gato. 


Poeta e contista, Poe é considerado por muitos o precursor da literatura policial ao inventar a figura do detetive. Mas ele é reconhecido mundialmente por seus contos de terror, que até hoje inspiram outros escritores e produtores de cinema. 

"Histórias Extraordinárias" já teve muitas edições, diferentes tradutores e editoras. A capa do exemplar acima é o que tenho em casa, publicado pela Ediouro em 2005 e que comprei no site Estante Virtual. Segundo a editora, os 18 contos desta edição foram selecionados e reescritos por Clarice Lispector, uma das maiores escritoras deste país. 

O livro inicia-se com um pequeno comentário de Charles Baudelaire, amigo de Poe: 

" Tinha muito a dizer. O vasto saber, o conhecimento de várias línguas, os sólidos estudos, as ideias colhidas em diversas viagens por outros países faziam de sua palavra um ensinamento incomparável" ( pg 7) 

Cena do conto "Ligéia", por Wogel, 1875



 Descrição da imagem:  a cena acima mostra uma mulher,magra e aparentemente debilitada envolta em um lençol. Apenas sua face está descoberta.Ela está de olhos fechados, sentada em uma cama com cortinas semiabertas. Ao lado da cama, vê-se um homem de costas chegando perto Ele tem cabelos escuros, é alto e magro e está vestindo roupas compridas. É possível ver suas mãos e parte do rosto. O quarto está escuro, apenas uma vela em um dos cantos proporciona uma luz fraca.



A atmosfera destes 18 contos tem certo teor autobiográfico,já que Poe teve uma vida desregrada na juventude e, anos depois entregou-se ao álcool após a morte de sua esposa. Ruína financeira e moral, perda de entes queridos, estilo de vida dissoluto aparecem em vários destes contos. Esse teor autobiográfico aparece em trechos como “ Depois de adquirir o vício, mudei minha maneira de agir, de pensar, de ser” que aparece logo no primeiro conto, O Gato Preto.  O conto “Ligéia”, no qual o narrador expressa a intensidade do amor que tinha pela esposa falecida, também traça paralelos interessantes com a vida de Poe.


Os contos deste livro são perturbadores para quem ainda não tem contato com a escrita deste autor (o que era meu caso, nunca havia lido nada dele), e a escolha de Clarice Lispector para 
traduzir estes contos foi bem acertada quando levamos em conta seu estilo de escrita.
“O Gato Preto” já começa metendo os pés no peito, com a narrativa do homem que vai ficando cada vez mais violento por conta do vício em álcool e acaba arruinando sua vida.  Em “O caso do Valdemar”, experiências com hipnose e “processo magnético” resultam em um macabro prolongamento da agonia de um moribundo.
Outro conto fascinante é “Manuscrito encontrado em uma garrafa”, com detalhes de uma viagem quase sem querer em um navio intrigante. "O Barril de Amontilado" é um conto de vingança feita de forma fria, que nos deixa até estarrecidos. 

Além destes citados, cada conto tem sua dose certa de suspense, terror e experiências sobrenaturais, sendo este livro uma boa amostra da escrita de Edgar Allan Poe.
Esta coletânea de contos é interessante para quem ainda não teve contato com a obra do autor, ou que teve contato apenas com seus poemas. 

E você, já conhecia o autor e/ou alguma de suas obras? 
E Clarice Lispector, conhece? 
Deixe seu comentário e vamos interagir! 

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Edgar Allan Poe 

Imagem: busto de Edgar Allan Poe. 



Nascido em Boston, em 1809, foi um poeta muito conhecido, sendo “O Corvo” um dos poemas mais traduzidos no mundo. Seus contos de terror são referência para muitos escritores e roteiristas. Faleceu em 1849.





Clarice Lispector  

Imagem: Clarice Lispector sentada em uma poltrona


Nascida na Ucrânia,em data incerta, vinda ao Brasil ainda na infância. Clarice é famosa pela sua escrita intimista, ou seja, focada nas sensações dos personagens em detrimento de enredo. Faleceu em 1977.





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Algumas sugestões de onde encontrar o livro: 



Esta postagem faz parte do Desafio Literário 2020 proposto pela Sybylla, do blog Momentum Saga




29 de ago. de 2018

Submerso




 I miss the comfort in being sad, I miss the comfort in being sad...

    Bernardo dedilhava no velho violão, de forma lenta, talvez da mesma forma que Kobain teria dedilhado antes do tiro fatal. 
Aquela viagem estava sendo mais uma coisa estúpida, no amontoado de outras coisas sem sentido que seus pais lhe impunham desde o diagnóstico de depressão, que recebera no ano anterior. 

   Sentia-se cansado, simples assim. Não era de nenhuma ajuda os conselhos que vinha recebendo desde o diagnóstico: desde o clássico "é falta de Deus no coração" até " estes remédios estão fazendo mal a você". Tá, os remédios estavam fazendo mal? Então por que o tio enxerido que veio com essa não jogava as injeções de insulina fora, para ficar bem? 
  
 Os pais ficaram tão afoitos em "curar a depressão" a qualquer custo, que a cada mês um plano mirabolante era posto em execução para desespero de Bernardo, que só queria continuar levando a vida normal que levava, pelo menos dentro do que fosse possível. 

Um mês foi uma viagem de avião para ver um show de rock, outro mês foram sessões de psicoterapia (pelo menos desta vez ele conseguiu se sentir um pouco melhor), no seguinte a psicoterapeuta foi dispensada pois os pais não viam "nem um sorriso" no filho, e trocaram por sessões de ioga. O problema não eram as ideias, era a falta de paciência  dos pais com o processo. Bernardo, coitado, não tinha voz. Mal conseguiu protestar quando as sessões de psicoterapia e ioga foram suspensas pois os pais dele não estavam vendo resultado - poxa, que resultados queriam em um mês apenas? 
         
Agora estava em um cruzeiro, sendo obrigado a dividir uma cabine com os pais, que estavam com a ideia fixa de que passar um mês em uma forçada convivência familiar era o que faltava para dar equilíbrio a eles e deixar Bernardo "melhor da cabeça". De que adiantava ter pais ricos a ponto de poder sair a passeio de férias quando dava na telha, viver rodeado de bens materiais, se o que ele mais precisava era simplesmente ser ouvido? Será que era tão difícil eles perceberem isso?

      Seu único conforto ultimamente era a troca de mensagens com Sabrina, sua melhor amiga, com quem passaria mais tempo pessoalmente se não fosse a mania dos pais de correr mundo. 
Sabrina era a primeira a dar "bom-dia" e quem desejava bons sonhos quando Bernardo, enrolado nas cobertas, fixava a tela do celular, escondendo-o debaixo do travesseiro quando alguém chegava perto. Era ela quem tinha sempre uma palavra amiga, o ombro onde Bernardo poderia desabafar, e ótima ouvinte nos momentos em que não sabia como ou o que falar para ele - e quando palavras não precisavam ser ditas. 
Era a única conversa no WhatsApp que não apagava, nem mesmo os gifs mais bobos. Quando não conseguia ficar online, revisitava todas as conversas, relendo as palavras reconfortantes de sua amiga.  
  Naquela noite, ficou um tempo observando as ondas revoltas do mar, sentindo a brisa e o doce barulho das águas. O cheiro e gosto de sal chegava até sua boca, levando lembranças de uma infância e início de adolescência felizes. 
Não sabia precisar o momento em que os dias começaram a parecer-lhe uma sucessão de momentos cinzas e sem graça. Tinha momentos felizes, claro, mas algo sempre o instigava, não deixava a sensação de felicidade ser completa. Sorria, sem o brilho nos olhos. Conseguia gargalhar, mas o sentimento era agridoce. Cada dia passado era um alfinete a mais espetando-o de forma invisível. Os pais, com suas constantes mudanças de planos, estavam sem perceber fazendo a situação de Bernardo piorar. Ele bem tentava dizer que se sentiria melhor ficando em sua casa, perto de seus amigos, continuando a estudar, enfim, se esforçando para manter a rotina, porém mesmo tendo bastante acesso à informação seus pais continuavam todo mês sugerindo algo diferente, como se esperassem que a situação de Bernardo se resolvesse em um passe de mágica. 
"Tente a receita desta forma. Se não deu certo, mude um ingrediente. Se não deu certo de novo, mude o fogão, ou as panelas, ou os temperos. Nem suspeite que você pode estar fazendo algo errado com os ingredientes que tem". 
Após escrever esta anotação em seu bloquinho - Bernardo tinha uma coleção de bloquinhos onde anotava ideias genéricas a respeito de tudo - rasgou a folha e a prendeu na cadeira onde estava. Aproximou-se da proa e suspirou fundo, sentindo a maresia. Com o violão, dedilhou e cantou baixinho:
Mas não me diga isso
É só hoje e isso passa
Só me deixe aqui quieto que isso passa, 
Amanhã é outro dia, não é? 
Será que algum dia conseguiria pelo menos fingir estar sempre bem? 
Um movimento em falso fez o violão escorregar. Bernardo contemplou, incrédulo, o instrumento se precipitando  em direção às águas escuras e frias, o ruído do contato entre seu velho companheiro e as ondas. Deixou-se ficar aí, observando  até mal divisar o contorno do violão afundando, despedindo-se. Bernardo imaginou onde ele cairia,se ficaria no fundo do mar, rodeado daqueles peixes abissais sobre os quais lera há tempos em algum site científico. Ou se acabaria nas areias de alguma praia,em outro canto qualquer do mundo, talvez em um lugar onde acabaria parando com seus pais, já que não tinha ideia de quanto tempo ficaria naquele navio. 
Por um momento pensou em mergulhar naquelas águas frias, na escuridão, como seu violão fizera involuntariamente. 

Queria ser como os outros e rir das desgraças da vida. 
Sentia-se assim, submerso. Como seu violão estaria em breve, imerso no desconhecido, no fundo de algo, onde os ruídos do mundo chegavam abafados e indistinguíveis. Sentiu o celular vibrar. Era Sabrina. Como, por graça de Deus, esta menina ainda mantinha contato com ele, ainda o suportava? 
Não me dê atenção.. mas obrigado por pensar em mim. 
Sem saber, devia sua vida a Sabrina, mais uma vez. O celular vibrando o tirara por instantes do devaneio em que se encontrava, do ímpeto de satisfazer o desejo de seguir seu velho e agora perdido violão. 
Oi, já é noite aí? Em que país você está? 
Nem sei, Sabrina. Não sei se já saímos da costa brasileira. É noite e só vejo oceano. 
E como você está se sentindo agora? 
Perdi meu violão, Sabrina. Cheguei perto demais da proa
Puxa... Fico triste por você... Sei como amava seu violão. 
Sim.. 
Sabrina gravou um áudio para animá-lo. Bernardo catou rapidamente de seu bolso os fones de ouvido e estava se preparando para ouvir, quando uma voz estridente ecoou pelo convés agora já vazio: 
-Bernardoooo... vem dormir, fica com a gente! 
Era sua mãe. Dando uma última olhada para  as águas agora mais escuras, pegou a folha do bloquinho que deixara na cadeira e foi encontrar a mulher, que tinha uma expressão preocupada no rosto. 
 Sem protestar, entrou em sua cabine, deu boa-noite aos pais, deixou que apagassem a luz e escondeu-se sob o cobertor, para poder ouvir a voz de sua amiga antes de tentar dormir. 
Um áudio simples, em que ela exaltava a amizade dos dois e prometia a Bernardo que ele poderia contar com ela sempre, sempre que precisasse. 
"Obrigado", ele enviou. "Você me entende melhor que qualquer pessoa neste mundo. E se, ou quando, eu voltar, faremos aquele passeio que vivo te prometendo. Pode me cobrar". 
Voltou a pensar no seu violão e na viagem que ele estaria fazendo, ao sabor das ondas, deixando Bernardo sozinho. Pensou sobre o inferno que sentia passar, sobre suas amizades, os tratamentos que ficaram incompletos. Era menor de idade, mas precisava se impor de alguma forma, estava sendo arrastado pelos pais para algo que não queria fazer. Com o brilho da tela do celular, encontrou no chão a folha que havia rasgado de seu bloco.  Silenciosamente, colocou-a sobre o criado mudo que estava ao lado da cama de seus pais. Talvez, só talvez, isso os ajudasse a perceber que algo estava errado naquela viagem maluca que eles organizaram, sem sequer revelar a ele o roteiro. 
De olhos abertos,virado para cima, um último pensamento chegou a Bernardo antes que o cansaço o vencesse: algum dia aquilo teria fim? 




(Quando comecei este conto, a ideia era a personagem seguir o destino do violão.. mas acabei amolecendo e fiquei com pena de matar Bernardo. Preferi deixar o questionamento, mostrando a angústia que as pessoas que tem depressão passam e o sofrimento de imaginar se algum dia este inferno terá fim. ) 



Depressão não é frescura. 
Depressão nem sempre tem um motivo forte ou é fruto de trauma. 
Depressão É DOENÇA. E precisa de tratamento. 
Depressão mata, e preconceito também. 
Depressão não é apenas tristeza, esqueça os estereótipos. 



8 de ago. de 2018

Resenha: Rosina em Conto e Verso, de Antonio Albércio Steilen

Este post faz parte do Desafio Literário 2018



Um livro de autor/autora brasileira 

Nota: Leio muitos, muitos livros de autores/as brasileiros/as, porém escolhi este para a resenha por ser de um conterrâneo meu. 




Rosina em Conto (canto) e Verso

Autor: Antonio Albércio Steilen ( Béli) 
Edição: 1 - maio de 2017
Ilustrações de João Francisco Steilen ( filho do escritor)
172 páginas
Editora: Gráfica e Editora 3 de maio.



Béli, neste livro, leva a gente a sonhar com tempos antigos e e relembrar fatos da infância, principalmente para quem cresceu ouvindo as histórias de nossos pais, avós e antepassados. O livro, com seus vários contos e poemas, é quase uma ode à nossa terra, à história da imigração aqui na região em que foi escrito. Quem mora aqui nesta cidade (Rio dos Cedros) e nos arredores, conhece várias pessoas descritas nos contos do livro, identifica-se com as expressões e costumes.. Mas mesmo quem não conhece, não terá dificuldade em compreender as histórias e traçar paralelos com sua realidade. 

O livro inicia já emocionando com o conto " A Lua por Testemunha", dividido em três partes. Este conto, que homenageia os pracinhas da FEB, mostra pelos olhos da personagem principal - Anselmo - a dura realidade da Segunda Guerra Mundial e a dor de separar-se da família, amigos e de um amor sincero sem haver certeza de que haverá um reencontro. A ficção e a realidade se encontram nesta história, com menção a pracinhas e fatos que realmente ocorreram, enquanto Anselmo segue ansiando o reencontro com a mulher que tanto ama. 
Ilustração de João F. Steilen para o conto
"Barro Branco"

Além deste conto, também há alusões a lendas e aparições, como em "Barro Branco",(uma localidade distante do centro do município) onde Béli narra uma das histórias de seu tio Eduardo sobre o  local ser amaldiçoado e pessoas que ouviram vozes e chegaram a ver fantasmas por lá. Aliás, este Tio Eduardo é mencionado em outro conto, também de "assombração". 

A linguagem, muitas vezes corrida e com longos parágrafos, é a marca registrada de Antonio Albércio neste livro, dando a impressão a nós leitores de estarmos em uma varanda em uma tarde quente de verão, ou em uma fria noite perto de um fogão a lenha, ouvindo alguém da família contando histórias de tempos passados, entre um gole de café e outro, misturando o português com o "Talian" ( dialeto com base na língua italiana, falado por bastante gente aqui na região). 

Além dos contos, também há poemas, dentre os quais um dos que mais gostei foi "Rios da minha Terra", que fala de alguns rios daqui do município, enaltecendo algumas comunidades do interior. 

Béli mora em uma localidade chamada de Rio Rosina, e seu amor por esta terra é evidente do início ao final do livro. Além de histórias e poemas, o que mais se vê no livro é sentimento de amor, de ternura. 

Contracapa do livro
A única coisa que noto que poderia ser melhor no livro, é a revisão, alguns erros ortográficos  passaram no processo. 

Recomendo o livro para quem quiser conhecer mais sobre a identidade de nosso município, prestigiar autores brasileiros e mergulhar mais em uma parte da cultura rica que temos em nosso país tão grande!


5 de jul. de 2017

Samantha

Samantha estava por um fio. Era a casa para cuidar, já que ninguém lá colocava a droga de uma xícara suja na pia pelo menos, a irmã mais nova para ajudar nos estudos (apesar de ela mesma não ter concluído o ensino fundamental), o maldito horário de trabalho que a fazia ter de acordar todos os dias às quatro da manhã para poder pegar dois ônibus e começar às oito. E nos domingos nem conseguir dormir um pouquinho mais para recuperar-se do cansaço da semana, pois sempre tinha alguém/alguma coisa a acordando:
- Chuva! As roupas no varal
- Sammy! Você viu minha calça preferida?
- Filha! Me mostra como é mesmo que cozinha arroz, mais tarde eu quero fazer.

Não se lembrava da última vez que tinha tido um tempo,um tempinho que fosse, para ela mesma. Já não fazia as unhas há anos, desistira de concluir os estudos por causa da dupla (até mesmo tripla) jornada de trabalho, estava com uma alergia na pele e sem tempo de ir ao médico porque não conseguia sair do trabalho para tal. Depois que a mãe foi embora, cansada de carregar a família nas costas, Samantha acabara assumindo o seu papel. A eterna empregada da casa. Era chegar do trabalho às nove da noite, deixar tudo pronto e se tivesse sorte, conseguir dormir antes da meia-noite para acordar de novo às quatro da manhã do dia seguinte. Isso não acabava nunca...  Às vezes maldizia a mãe, que se livrara de todo o tédio e de uma família que não colaborava em nada, porém a deixara ali, amargando a vida que fora dela. Por quê?

E.. por que essa situação continuava? Os irmãos e o pai tinham duas pernas e dois braços como ela, caramba. O pai também trabalhava fora o dia todo, porém isso não deveria impedi-lo de levar à pia a droga da xícara suja de café. O fato da irmã estudar não deveria impedi-la de colocar suas roupas sujas no cesto. Foi aí que Samantha cansou de vez. Não era justo. Eram dez da noite de domingo. Foi para seu quarto e começou a aprontar o que precisaria para o dia seguinte.

Quatro da manhã, segunda-feira. Um ovo, uma xícara de café. Tudo arrumadinho na cozinha. Uma marmita para o pai levar ao trabalho. Pegou sua bolsa, seu crachá e foi até o ponto de ônibus. A irmã teve de ir para a escola com a primeira roupa limpa que encontrou e que estivesse passada. Junto à cabeceira de sua cama, um bilhete: “Daniela, prepare seu café da manhã e o do Júlio e veja se ele tem o uniforme pronto. Samantha”.

No ônibus, Samantha pensava em como Daniela iria ajudar o irmão caçula, se nem mesmo sabia direito onde ficavam as coisas dentro da geladeira. Mas ela já tinha quinze anos e poderia aprender.
Nove da noite. Samantha chegou em casa. Viu a louça na pia, cobriu com um pano e foi tomar banho. Leu um livro no silêncio de seu quarto antes que Daniela entrasse e logo pegou no sono. Deixou um bilhete na mesa:
“Pai, as contas de luz e água vencem hoje. Como o seu trabalho fica mais perto da lotérica que o meu, por favor pague estas contas”

Terça-feira, cinco da tarde. O pai chegou em casa. A louça do dia anterior ainda estava na pia. O que estava havendo com Samantha? As contas ainda estavam na mesa, ele não havia visto o bilhete, nem mesmo quando viera para casa almoçar. Daniela e Júlio estavam lutando para descobrir como a máquina de lavar roupas funcionava, pois Samantha não havia feito isso também. Como ninguém lavara as louças, cada um pegou uma colher, um garfo e uma faca e comeram diretamente das panelas, que aumentaram o volume que se acumulava na pia.

Quarta-feira, sete da manhã. Enquanto se preparava para ir à escola e chamava o irmão, Daniela topou com mais um bilhete: “Só irão para a máquina as roupas que estiverem no cesto de roupa suja. E lavem as louças, pois eu vou chegar mais tarde”.
Ao voltar da escola, Daniela teve de lavar as louças, pelo menos a quantidade suficiente para poderem almoçar.
Samantha marcou a consulta com a dermatologista e antes de voltar do trabalho foi comprar um livro e matricular-se na autoescola.


    Dez horas da noite. Samantha verificou os cestos de roupa suja, colocou algumas na máquina e deixou o ciclo completar. Passaria as roupas apenas no sábado. Tomou banho e foi dormir com um sorriso ao ver que a pilha de louças na pia diminuíra.

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 Bom dia, boa tarde, boa noite! Tudo bem?  Chegando mais uma edição da nossa blogagem coletiva semanal!  Quem tem cantinho (ou até mesmo qua...

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